Dicionário de Aparecida
de Paulo Suess – 02/12/2007
As muitas palavras do Documento de Aparecida1 (DA) podem ser comparadas a uma sacola de pérolas, umas preciosas, outras de vidro, perpassadas por um cordão, como um rosário com seus mistérios gloriosos, gozosos e dolorosos. Este Dicionário de Aparecida representa o cordão que junta e ordena as pérolas em torno de 40 palavras-chave atravessadas pelos mistérios de glória, alegria e dor dos (->) pobres que são a imagem de (->) Jesus crucificado. A palavra (—>) “missão” os sintetiza a todos em seus conteúdos, fusos horários, compassos e descompassos históricos, e horizontes diferentes. A missão tornou-se o paradigma síntese num duplo sentido: primeiro, assume a caminhada das quatro Conferências latino-americanas anteriores com seus paradigmas de descolonização (fundação do Ceiam), opção pelos pobres e libertação (Medellín), (->) comunhão e participação (Puebla) e (->) inculturação (Santo Domingo); segundo, sintetiza as múltiplas propostas do próprio DA sob o prisma da missão. Sintetizar não quer dizer homogeneizar ou uniformizar, mas articular em suas diferenças, às vezes complementares, outras vezes tensas, nos limites da exclusão recíproca.
A leitura que atravessa essas 40 palavras-chave é (—>) pastoral e tem, como o próprio DA, um “(->) compromisso com a (->) realidade” (491), fiel às conquistas do (-») Concílio Vaticano II e do magistério latino-americano e caribenho. Trata-se de uma leitura e sistematização em função da animação missionária das comunidades. O DA facilita esse enfoque “animado”. Desde a “Exortação Apostólica sobre a Alegria Cristã”, de Paulo VI (1975), nunca mais um documento do magistério falou tanto de alegria, de alegria ingénua e real, estratégica e ontológica, histórica e escatológica. A presença da “alegria” em 39 itens do DA, contrastando com os 11, que mencionam a “cruz”, é um indicador da presença de movimentos pentecostais católicos em Aparecida.
Cada uma das palavras escolhidas envolve um campo semântico amplo e uma opção. Ao sintetizar, por exemplo, as ocorrências da palavra (-») “testemunho” no DA, também se encontram nas poucas linhas desse verbete os significados de “testemunhar” e de “testemunha”. Na escolha dos verbetes, considerei sempre sua prioridade (-») pastoral, e procurei – mais “carteiro” do que redator – pouco interferir na costura e justaposição das citações. Alguns verbetes não foram incluídos, porque não encontraram no DA uma repercussão significativa ou, pelo contrário, uma presença inflacionária. As 40 palavras, quando citadas num dos textos, são lembradas por uma seta (—>), remetendo a outra palavra-chave. Cada uma dessas setas aponta para um nó de uma rede semântica, que permite uma leitura transversal do Dicionário. Quem busca na selva do DA, com suas 240 páginas, clareiras para uma rápida orientação pessoal, para uma palestra, uma aula ou um curso vai encontrá-las nos 40 dossiês deste Dicionário e no “índice analítico”, que reúne as não foram incluídos, porque não encontraram no DA uma repercussão significativa ou, pelo contrário, uma presença inflacionária. As 40 palavras, quando citadas num dos textos, são lembradas por uma seta (->), remetendo a outra palavra-chave. Cada uma dessas setas aponta para um nó de uma rede semântica, que permite uma leitura transversal do Dicionário. Quem busca na selva do DA, com suas 240 páginas, clareiras para uma rápida orientação pessoal, para uma palestra, uma aula ou um curso vai encontrá-las nos 40 dossiês deste Dicionário e no “índice analítico”, que reúne as 40 palavras-chave em temáticas mais amplas. Cada um dos leitores e das leitoras pode começar com seu verbete e tema de preferência: o formador com a (—>) formação, o pároco com a (-») pastoral, o místico com a (—>) espiritualidade e o militante com a (—>) justiça.
A rapidez da informação corresponde à urgência da situação. Ninguém tem tempo a perder. No DA, a urgência histórica e escatológica é uma marca registrada da missão da (->) Igreja. Em muitos lugares, o DA aponta para essa urgência. Tudo no campo pastoral (368, 389, 437j, 456, 518, 548) e no social (148, 384, 550) parece urgente: Urgente é um projeto missionário nas dioceses (169) e urgente é o anúncio do (—>) Reino nas comunidades (289); urgente é o diálogo entre a fé, a razão e as ciências, sobretudo com a bioética (466). Urgente é a formação específica dos (—>) leigos “para que possam ter incidência significativa nos diferentes campos” (283); urgente é a “promoção vocacional” (315); precisamos socorrer “as necessidades urgentes” (384), e urge dar solução para os “grandes problemas económicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo” (148). “É urgente criar (—>) estruturas que consolidem uma ordem social, económica e política na qual não haja iniquidade e onde haja possibilidades para todos” (384). “É urgente prosseguir no desendividamento externo” (406c). “Conscientes
de que a missão evangelizadora não pode estar separada da solidariedade com os pobres e sua promoção integral, (…) é urgente, portanto, a criação de um fundo de solidariedade entre as Igrejas da América Latina e do Caribe (…)” (545). E, finalmente, “urge educar para a paz” (541; cf. 394). O anúncio do Reino é uma questão de vida e morte. “A caridade de Cristo nos compele” (2Cor 5,14) a destruir as estruturas da morte, interromper a lógica dos sistemas e questionar a lentidão das burocracias. A vida é sempre para hoje. A (-») esperança é para agora.
A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que produziu o DA, se realizou num contexto de pluralismo cordial. Pela pertença eclesial, formação teológica e proximidade com a realidade latino-americana, foram setores muito diferentes que se reuniram em Aparecida. Podemos distinguir cinco: O setor “Teologia e Pastoral da Libertação”, o setor “Bom Pastor”, o setor “Cúria Romana”, o setor “Movimentos” e o setor pragmático de “Navegantes Independentes”. O setor “Bom Pastor”, delegados que trabalharam nas (->) paróquias e conhecem bem a realidade pastoral do povo.
geralmente votou junto com o setor “Pastoral da Libertação”. O setor “Cúria Romana” estava geralmente mais ao lado do setor “Movimentos”, ambos distantes da realidade concreta do continente e marcados por uma teologia perene e um discurso de ideologia universalista. No meio desses quatro setores havia o setor “Navegantes Independentes”, que votava com um ou outro grupo. Nas votações, geralmente, apareciam dois blocos, os pastoralistas contextualizados e os universalistas, subordinando a operacionalização pastoral a seus princípios e interesses teológicos. Todos os setores influenciaram na redação do texto conclusivo de Aparecida: o neocatecumenato na formação, os pentecostais na pneumatologia, os da pastoral da libertação na análise da realidade.
No DA existem também silêncios, silêncios sobre o sistema económico inserido no neoliberalismo, sobre a inovação dos ministérios e sobre a Teologia índia, por exemplo. O frequente uso das palavras “só” (15), “sem” (252), “sempre” (363), “nunca” (413) e “todas/todos” é indicador de um certo rigorismo teológico-pastoral. Dois exemplos: “Todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a (->) Eucaristia for o centro de sua vida” (180). Será que o grande número de comunidades sem Eucaristia não dará fruto? “Sem uma participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito, não existirá um (-») discípulo missionário maduro” (252). Mas o que vai acontecer com as “milhares de comunidades com seus milhões de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical” (253)? Aparecida os consola: “Podem alimentar seu já admirável espírito missionário, participando da celebração dominical da Palavra, que faz presente o Mistério Pascal no amor que congrega, na Palavra acolhida e na oração comunitária” (253). Em seu conjunto, porém, a missão de Aparecida tem rumo e passou pela peneira das mediações históricas e contemporâneas dos pobres e dos outros, que permite uma leitura teológica aberta pro populo.
Por fim, quase todos os delegados e observadores disseram estar satisfeitos com o Documento e evento de Aparecida. Do evento fizeram parte, além da visita do Papa, os milhares de romeiros, a Tenda dos Mártires, o Seminário Latino-Americano de Teologia – organizado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, em Pindamonhangaba/SP -, a romaria das Comunidades Eclesiais de Base e muitos encontros que contribuíram para o bom êxito de Aparecida. Alguns bispos do setor mais progressista disseram, sem resignação: “Para que brigar por palavras, como Teologia da Libertação, se seus conteúdos, a opção pelos pobres, as CEBs, o protagonismo dos (->) indígenas e (—>) afro-descendentes e o método ver-julgar-agir, estão garantidos?”. É verdade que, em determinadas situações, a briga pelas palavras é briga por bandeiras. Quem participou das articulações em Aparecida sabe do enorme esforço, nem sempre bem-sucedido, para que temas óbvios constassem do texto e avaliações caducadas saíssem dele.
Agora é a hora de a recepção de Aparecida, que nos convida a ir mais longe, peregrinar com Aparecida além de Aparecida, quarenta dias e quarenta noites, até a montanha de Deus, o Horeb (Sinai), como Elias (lRs 19,1-8), com uma palavra para iluminar cada noite, para selar sempre de novo a “aliança com Deus e com os homens” (336), sobretudo os pobres, para que a Igreja realmente se torne “casa dos pobres” (8, 524).
No dia 13 de maio de 2007, no santuário de Aparecida, começou a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (cf. 1, 537). Dia e lugar foram escolhidos por causa do seu significado mariano e do contexto brasileiro da Abolição. (->) Maria, a amada, assumiu em Aparecida, mais uma vez, as origens humildes de seu nascimento e de sua imagem, que é de barro cozido e escurecido pela longa permanência nas águas do rio. Desde as profundezas das águas da nossa realidade e do nosso imaginário, onde convivem pobreza e realeza, anjos e demónios, nos convoca e envia – sempre a serviço do Reino!
São Paulo, 2 de dezembro de 2007
Advento do Senhor da História, Esperança dos Pobres
SUESS, Paulo. Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral. São Paulo: Paulos, 2007, 134 p.