Vicente Cañas. Até que enfim chegou a hora da justiça!
de Aloir Pacini – 30/11/2017
Depois de dois dias de juízo o Tribunal do Júri na Justiça Federal em Cuiabá, Mato Grosso (Brasil) [1], Ronaldo Antônio Osmar, o único acusado vivo em idade legal de ser julgado pelo assassinato do missionário jesuíta Vicente Cañas ou Kiwxi foi declarado culpado de mandar matar o missionário jesuíta de origem espanhol, naturalizado brasileiro, fato ocorrido em 6 de abril de 1987. O júri, formado por 4 homens e 3 mulheres, considerou o acusado culpado dos delitos de colaboração direta e planejamento de emboscada, por isso foi condenado a 14 anos e três meses de prisão em regime fechado, mas responderá em liberdade, pois já vivia assim nestes 30 anos. Foi demonstrado que, sendo delegado de polícia da região, contratou os assassinos para executar o Irmão Vicente, mediante pagamento por parte dos fazendeiros interessados nas terras dos Enawenê-Nawê.
O Irmão Vicente Cañas foi avisado das ameaças feitas e dos perigos que passava, por isso veio discretamente a Cuiabá para encaminhar os trabalhos e voltou com um peixe assado pelo Darci Pivetta como matula no ônibus para não precisar descer na viagem de retorno. Não tirava férias junto da família para não deixar os Enawenê-Nawê sozinhos.
Durante o Júri estiveram presentes três sobrinhas e um sobrinho do Irmão Vicente vindos da Espanha, os indígenas Enawenê-Nawê, Mÿky, Rikbaktsa, Chiquitanos, Nambikwara, Boe (Bororo) e numerosos representantes da Igreja que trabalham com os indígenas.
A defesa buscava demonstrar que a morte não foi violenta, mas natural, por causa de una úlcera que nunca existiu. Também insinuou que foram os Enawenê-Nawê que mataram Vicente Cañas.
A culpabilização das vítimas é algo odioso no Brasil até os dias de hoje. Quando a defesa começou a culpar o próprio Vicente Cañas e os indígenas Enawenê-Nawê ela se perdeu. Suas contradições foram aparecendo e as mentiras foram cuidadosamente demonstradas.
Quando o profeta Daniel (capítulo 13, versículos 1 a 65) defendeu Susana da acusação da classe dominante da sua época e a livrou da pena de morte, deixou uma lição de que Deus auxilia os inocentes e mostra-nos que a iniquidade prejudica quem a comete. Deus fica indignado com o pecador empedernido que não O teme e O desafia como se fosse imune à lei que impõe sobre os demais. A bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que nos convida ao Natal também nos convida a rever nossa vida, refletir sobre nossos atos e a nos convertermos todos os dias.
O juiz falou durante o Júri: “O tempo leva tudo, até mesmo a memória!” e auxiliou a preservar a memória dos indígenas nesta terra do Mato Grosso, valorizou-se as formas de ver diferente destes que se tornaram testemunhas fiéis dos fatos. E o que estava escondido foi proclamado acima dos telhados.
Quando os Rikbaktsa testemunharam que o matador teria falado que desafiava o Irmão Vicente Cañas “Você vai morrer no lugar dos índios!”, algo mais estavam dizendo para nós da vida deste mártir, como Jesus que se tornou o Cristo. Noutro contexto, Fausto Campoli falou que os Enawenê-Nawê conviviam com o Irmão Vicente como um deles, o tratavam dentro de suas normas dentro de um clã deles. E, uma vez morto, o sepultaram segundo os seus rituais, canonizaram Kiwxi como Enorenawe, um ser celestial. Falou que ia subir para a aldeia no dia seguinte. Estava no Barraco junto do Juruena, e talvez pensasse que subiria para a aldeia dos Enawenê-Nawê, mas subiu para a aldeia dos céus, tornou-se mais um santo da Igreja Católica.
Nota do autor:
Em 24 de outubro de 2006, 19 anos depois do crime, antes de prescrever, foi conseguido instalar o primeiro Tribunal do Júri para julgar os acusados de homicídio duplamente qualificado, mediante pagamento e em emboscada (outros implicados já tinham falecido ou não tinham idade legal para serem julgados). Naquela ocasião foram levados a Júri Popular e sentaram no banco dos réus: Ronaldo Antônio Osmar, ex-delegado de polícia de Juína (município onde ocorreu o assassinato), Martinez Abadio da Silva, um conhecido pistoleiro da região, e José Vicente da Silva. Os três, entretanto, foram absolvidos por falta de provas.
Aloir Pacini é padre jesuíta, mestre e doutor em Antropologia Social e é professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Eis o artigo.
Fonte: IHU