Interfaces da missão a partir da América Latina

de Estêvão Raschietti - 10/10/2024

A missão se faz reflexão, se faz interpelação, se faz teologia. Podemos dizer com o teólogo alemão Martin Kähler (1908), que a missão é “a mãe da teologia” pois desde a época apostólica os cristãos se encontraram na urgência de “dar razão de sua esperança” (1Pd 3,15), devendo responder a questões que os “outros” lhes apresentavam. Os próprios evangelistas e autores neotestamentários, particularmente Paulo, redigiam suas cartas e suas obras num contexto de uma Igreja “obrigada” a fazer teologia, em virtude de seu encontro missionário com o mundo.

Podemos até dizer, com Bevans e Schroeder (2016), que a missão não é somente a “mãe da teologia” mas de certa forma é também “a mãe da Igreja”, enquanto, seguindo o roteiro do Atos dos Apóstolos, os discípulos de Jesus não se reconheceram plenamente como Igreja – como realidade distinta do judaísmo – até não se sentirem chamados a assumirem uma missão além de si mesmos. A partir desta perspectiva, a Igreja não nasce concretamente no dia de Pentecostes, ou seja, no momento em que o anúncio de Pedro é dirigido somente aos judeus, mas quando os discípulos compreendem e assumem a missão de anunciar o Evangelho fora de seu ambiente sociocultural, o que acontece com a “Pentecostes dos pagãos” (At 10,44), com o anúncio do Evangelho aos gregos (At 11,20) e com a formação de uma comunidade intercultural em Antioquia, onde pela primeira vez os discípulos recebem o nome de “cristãos” (At 11,26). Desta maneira, o Concílio Vaticano II pode afirmar com confiança que “a Igreja peregrina é por sua natureza missionária” (AG 2), enquanto o Papa Francisco também acrescenta que “a Igreja nasceu em saída” (Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2014).

Com efeito, o único mandato que o Ressuscitado deixou a seus irmãos foi o de “fazer discípulas todas as nações”. Esse envio não constitui apenas uma tarefa, mas define também uma profunda identidade da Igreja: “a Igreja existe [somente] para evangelizar” (EN 14). Não se trata de um programa proselitista, porque “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração” (EG 14), uma vez que o discípulo é o praticante da Palavra que liberta, que humaniza, que cura. Da vivência da Palavra das Bem-aventuranças se joga a salvação ou condenação da humanidade: por isso, o Evangelho convida a uma metanóia e uma radical mudança de vida, ao estilo de um Deus que “não veio para ser servido, mas para servir, e dar a própria vida em resgate de muitos” (Mc 10,45). Um Deus de cabeça para baixo, que é misericordioso, que ama os inimigos, que perdoa sempre, que é ternura para com os pobres e os pecadores. Esse é o Deus que somos chamados a viver, testemunhar e anunciar: um Deus que se faz vida, um Deus que se faz missão.

Com efeito, a missão tem em Deus Trindade seu “amor fontal”: missão não é nada mais nada menos que a natureza divina da qual a Igreja é chamada a participar. Deus é missão porque Deus é amor: um amor que transborda, um amor que se entrega, um amor que não se contêm e que sai de si. A Igreja encontra nesse amor a vida divina, a vida eterna, a vida doada. Destarte, “a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue a dar a vida aos outros: isso é definitivamente a missão” (DAp 360). Portanto, como diria Jürgen Moltmann, não é a Igreja que tem uma missão, mas é uma missão que tem uma Igreja. A missão vem sempre em primeiro lugar!

Imaginemos só por um instante o que a nossa Igreja poderia se tornar se levássemos tudo isso a sério, se acreditássemos que a Igreja “não é fim em si mesma, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento” (RMi 18). Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras? “Simplesmente reconheceríamos que a ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja” (EG 15). Já João Paulo II lembrava que “toda a renovação na Igreja há de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão eclesial” (EO 19), enquanto Papa Francisco invoca o Espírito para “que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos” (EG 261).

Devemos admitir que se tudo isso for verdade, “nós não somos ‘mais’ Igreja quando construímos a Igreja, mas quando estamos fora dela” (BEVANS, SCHROEDER, 2016, p. 19). “Estar fora”, sair de si, ir sempre mais além, significa estar em lugares “outros”, que não remetem a qualquer nossa referência. Significa se dispor a ser acolhidos como peregrinos na casa dos outros, aprender outra língua, partilhar outra comida, habitar outras fronteiras com um coração sem fronteiras, até os confins da terra. Entendemos essa dimensão universal como elemento crucial que define a qualidade, o alcance e a relevância de toda missão eclesial, uma vez que “a graça da renovação não pode crescer nas comunidades, a não ser que cada uma dilate o campo da sua caridade até aos confins da terra e tenha igual solicitude pelos que são de longe como pelos que são seus próprios membros” (AG 37).

Devemos admitir que estamos um pouco atrasados nisso: nossas comunidades estão muito fechadas em si e no seu entorno; concebemos a missão como uma ação muito limitada, quase circunscritas dentro de nossos âmbitos. Tudo é missão e assim não sabemos nos projetar muito além do que podemos facilmente alcançar, sem muita ousadia, caindo na armadilha de nos fechar em nós mesmos (DAp 376). Não foi assim que a Boa Nova de Jesus chegou até a nós e não foi assim que a Igreja se tornou presente no meio de muitos povos. É verdade que somos igrejas bonitas, alegres, ricas de fé viva, de caminhada profética e cheias de esperança … mas muitas vezes voltada só para si.

É com esse olhar e com essas inquietações que nós do Centro de Estudos Missionários Latino-Americano (CEMLA) nos encontramos anualmente, há mais de dez anos, para uma semana de encontro, estudo e partilha, com o objetivo de refletir sobre esta missão e publicar fascículos com os nossos aportes. Essa iniciativa reúne missionários e missionárias xaverianas do Brasil, da Colômbia e do México que buscam caminhos de renovação da missão através da análise das mudanças sociais, políticas, econômicas, religiosas e eclesiais em ato, à luz de uma leitura teológica das diversas realidades. O propósito é de oferecer estímulos, pistas e perspectivas para projetos missionários que manifestem sempre mais a relevância do paradigma da missão para a Igreja toda, para os organismos missionários e para a pesquisa teológica.

Apresentamos aqui uma coletânea dos nossos artigos em três sessões: teologia da missão; desafios da missão, contextos e sujeitos da missão. Não é nossa pretensão abranger todos os campos da ação missionária, e sim destacar alguns elementos e alguns aspectos missiologicamente relevantes que pouco se abordam na prática pastoral, na formação dos agentes e na reflexão teológica, ainda bastante hesitante e pouco habilitada em dominar determinados assuntos.

Aguardando tempos melhores em que a missiologia possa ser novamente reconhecida a pleno direito pela pesquisa acadêmica, oferecemos esse contributo para – quem sabe – despertar algum interesse e – esperamos! – algo oportuno e auspicioso para quem se entrega à missão de corpo e alma, até os últimos confins.