Bíblia e Missão: “A letra sozinha mata, o Espírito dá vida”, afirma frei Carlos Mesters
de Jaime Patias – 26/02/2014
O 3º Simpósio de Missiologia, que acontece em Brasília (DF), recebeu nesta quarta-feira, 26, frei Carlos Mesters e o professor Francisco Orofino, da equipe de coordenação do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), para refletir sobre o uso da Bíblica na prática missionária. O evento teve início na segunda-feira, 24, e conta com a participação de 50 pessoas entre, docentes, teólogos, pesquisadores, representantes de instituições missionárias e agentes de pastoral do Brasil e convidados da Bolívia e do México.
“Mais do que encontrar um sentido exato dos textos através da exegese, o importante é adquirir uma atitude interpretativa correta diante do texto”, afirma o frei carmelita, Carlos Mesters, biblista holandês que popularizou o estudo da Bíblia no Brasil e na América Latina. Segundo ele, “não devemos perder a liberdade profética dos filhos e filhas de Deus presente na interpretação que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento”.
Ao falar do método de interpretação, Mesters destaca que não se pode olhar somente a letra, mas é preciso considerar o Espírito, por que “a letra sozinha mata e o Espírito dá vida. Por tomarmos os textos ao pé da letra, nós matamos muita gente ao longo da história, em nome de Deus”, argumenta. A renovação da exegese começou pela crítica literária que questionou o fundamentalismo.
Diante de textos considerados difíceis, a recomendação é partir da prática missionária de Jesus para poder ter critérios de interpretação. A esse propósito, Carlos Mesters lança algumas questões para avaliar atitudes na Missão. “Todas as religiões procuram ser missionárias. A nossa religião tem algum privilégio? Vamos entrar em competição com os outros para ver quem consegue mais adeptos? Os muçulmanos são missionários e divulgam a sua religião, atraem pessoas. No passado nós saímos da Europa, como missionários aos milhares, para anunciar a Boa Nova do Evangelho. Qual a diferença entre o anúncio que nós fazíamos e o anúncio que fazem os muçulmanos? Como entender a afirmação de que Jesus é a única pessoa através da qual podemos ser salvos ou então o ensinamento: ‘fora da Igreja não há salvação’? O século de maior expressão missionária foi também o século de maior violência e mortandade da história. Qual a credibilidade da ação missionária das nações cristãs?”
Mesters pondera que, por estaremos agarrados numa visão do passado, não nos damos conta de que o mundo mudou. “Eu sou cristão, mas não posso ir numa aldeia indígena exigir que eles se tornem cristãos. Como ser humano, somente posso exigir que os indígenas sejam seres humanos”, defende.
O professor recorda que somente no Concílio Vaticano II aparecem as primeiras posições oficiais de uma nova maneira de pensar. “O que caracteriza a nossa prática hoje é a atitude de diálogo e respeito. A gente pensa que está levando alguma coisa e está recebendo mais do que leva. Conversando com as outras pessoas acontece a conversão. Uma conversa grande se torna ‘conversão'”, brinca. Nesse sentido, citou o exemplo da Irmã Genoveva, missionária falecida no ano passado e que viveu por 60 anos com o povo Tapirapé, no Mato Grosso. Veva, como era conhecida, foi uma das pioneiras da teologia da inculturação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e sempre demonstrou total respeito à cultura e religiosidade dos indígenas. “Veva não falou muito de Jesus, mas pela sua presença de amor, os Tapirapé, que se encontravam numa situação de desolação, se renovaram e o número deles triplicou. Estas e tantas outras atitudes já fazem parte da nossa prática missionária”.
Na sua exposição, Mesters dialogou com o professor Francisco Orofino e destacou sete características da ação evangelizadora de Jesus: anunciar a Boa nova de Deus; o objetivo é a vida em plenitude; o caminho é a harmonização das relações humanas; a dinâmica é os sinais dos tempos; viver o novo; ver a presença de Deus e viver a misericórdia.
A proposta de Jesus
Complementando pontos levantados por Mesters, o professor Francisco Orofino, doutor em teologia Bíblica e coordenador do CEBI, destaca que, “o ponto de partida para a prática evangelizadora de Jesus é a situação do povo”. Segundo ele, na sociedade contemporânea, para entender a situação do povo precisamos perceber a mudança de época em curso.
O crescente processo de urbanização faz desaparecer a matriz de muitas religiões que tem origem no rural. “As bases das grandes religiões são rurais, mas hoje a maioria da população vive numa realidade urbana e produz uma cultura urbana. A ideologia dominante das sociedades urbanas é o neoliberalismo, um sistema antievangélico. Nesse sistema, o indivíduo não precisa de ninguém. Para se tornar um vencedor ele deve eliminar as suas dependências, ter dinheiro e se tornar a pessoa chave do sistema, ou seja, um consumidor”, avalia Orofino.
Segundo o professor, o BBB da Globo é o programa que melhor reproduz o momento em que vivemos. A produção transforma a tela da televisão na janela da nossa casa e estimula a curiosidade. O ambiente é muito familiar: “a casa mais vigiada do Brasil”. Só que dentro da casa moram pessoas sem nenhum laço afetivo. Na casa, tudo é artificial, inclusive o apresentador Pedro Bial, mas o objetivo é sólido: se você quiser vencer e ficar com o dinheiro, deve eliminar as pessoas. “Cria-se uma cultura da eliminação onde eu sou convidado a eliminar as pessoas que me atrapalham, que me impedem de ser um consumidor”. Os telespectadores pagam as ligações para eliminar as pessoas da casa e ainda vibram. O paredão lembra a eliminação nos sistemas totalitários. “Essa é a proposta da época que vivemos. E quando isso deixa de ser ficção e passa a ser realidade é trágico”, comenta.
O uso da Bíblia na Missão
“Somos chamados a uma missão de evangelizar uma sociedade urbana, individualista, consumista, violenta, com laços afetivos cada vez mais frágeis e com dificuldade de viver uma proposta”, afirma o biblista. “A figura de Jesus encarna uma proposta. A sua segurança pessoal está na prática da partilha. Fazer missão é partilha uma experiência de partilha. Ter clareza da proposta de Jesus é um ponto fundamental no uso da bíblia na Missão”, complementa.
Em seguida, Orofino comentou Êxodo 3, 7-8, texto sobre a vocação de Moisés que, no seu entendimento, é a própria vocação de Deus que responde ao grito do pobre. “Toda a pessoa que parte em missão é uma resposta de Deus ao grito de alguém. Por isso quem se sente vocacionado deve se perguntar: quem está gritando, onde está gritando, o que está gritando. Toda a vocação humana é a resposta de Deus ao grito de alguém. Jesus se enquadra nisso também”.
Para Orofino, “a Bíblia toda é uma parábola onde a resposta final não é dada por quem conta, mas por quem ouve. Levar a Bíblia em missão é ter a consciência que se está levando uma proposta pedagógica”. Na opinião do professor, a Bíblia não é um livro doutrinário, mas didático que quer nos transmitir uma experiência cujo ponto fundamental é entrar na lógica da partilha.
Na época de Jesus quem gritava eram os excluídos pelo discurso teológico por que tinham uma impureza. E Jesus começar a valorizar o espaço mais sagrado que existia: a casa. “Ele recupera a casa e seus ritos e reforçar os laços afetivos para reintegrá-las ao convívio. Jesus ensina a recuperar uma espiritualidade em quatro pontos: o tempo já se cumpriu (a lógica do encontro com Deus); o Reino está próximo; a mudança de vida (conversão – metanóia); e crer no Evangelho de Deus”, explica o biblista.
Francisco Orofino sublinhou ainda que devemos usar a Bíblia para entender como Deus fala hoje nos lugares onde fazemos a Missão. Par ele é o fundamental é “perceber quais são o sinais da presença de Deus na caminhada do povo. Por isso não podemos nos prender só no texto das Escrituras”.
A programação do Simpósio incluiu trabalhos em grupo onde os participantes analisaram textos bíblicos e em seguida, partilharam o exercício em plenária.
Promovido pelo Centro Cultural Missionário (CCM) e a Rede Ecumênica Latino Americana de Missiólogos e Missiólogas (RELAMI), o evento se estende até sexta-feira, 28, e concentra suas reflexões sobre o tema: “Palavra de Deus e Missão: identidade, alteridade e universalidade na Bíblia”.