A missão no Vaticano II
de Memore Restori – 08/07/2015
A caminhada da Igreja Latino-Americana, após o Vaticano II, se caracterizou pelo sonho e a incansável busca de um novo jeito de ser Igreja, fazendo uma recepção fiel e criativa do Vaticano II (cf. FAGGIOLI, 2013, p. 87). A interpretação do Concílio levou a Igreja a dar passos significativos, desde a Conferência Geral de Medellín – 1968, para se tornar “a Igreja de todos e em particular a Igreja dos pobres” (João XXIII – Mensagem 11/09/1962); uma Igreja que, embora não tivesse nem ouro e nem prata (cf. At 3,6), possuía a alegria de ser discípula de Jesus Cristo – missionária a todo e a qualquer custo – doando de sua pobreza (DPb 368).
Este sonho era embalado pelos cantos das comunidades, em momentos litúrgicos e no dia-a-dia da vida cotidiana, para que o sonho – quanto antes – pudesse se tornar realidade:
Eu quero ver, eu quero ver acontecer, um sonho bom, sonhos muitos acontecer. Sonho que se sonha só pode ser pura ilusão. Sonho que se sonha Juntos, é sinal de solução. Então, vamos sonhar companheiros, sonhar ligeiro, sonhar em mutirão. (ZÉ VICENTE – Eu quero ver acontecer).
Tudo isto está bem longe de ser saudosismo, é a realidade que se configurou a partir do Vaticano II. Um novo horizonte se descortinou através da intuição do Concílio ao afirmar que a Igreja é “Povo de Deus” (LG 9); portanto, o povo tomou a dianteira – enquanto pode – para se tornar sujeito eclesial e sujeito de evangelização. De fato, a atividade missionária da Igreja é um direito e dever fundamental de todos os batizados, de todos os membros do Povo de Deus (cf. AG 35) que, abraçando a causa de Jesus Cristo, se tornam testemunhas dando razão de sua própria fé (cf. 1Pd 3,15) na família, no trabalho, na comunidade, no lazer.
O equívoco que ainda hoje existe é pensar que a missão da Igreja é algo reservada para o clero, teólogos, seminarista e freiras; enfim, para entendidos: pessoas que se debruçam o dia inteiro sobre livros de teologia, manuais e documentos missionário da Igreja. Sem dúvida, tudo isso tem uma parte de verdade, porém, não podemos esquecer que também o povo mais simples tem uma profunda sabedoria, devido à sua própria experiência de vida e pela força do Espírito Santo, “o agente principal da evangelização” (EN 75), que atua na prática missionária de cada batizado de forma inesperada e surpreendente.
É o caso da “dona Maria e seu Zé” que, sem ter grandes conhecimentos teológicos sobre a missão e a respeito dos documentos missionários da Igreja, lá na comunidade onde moram, sabem praticar – como ninguém – as dinâmicas da inculturação, do diálogo inter-religioso e do testemunho como parte integrante da missão evangelizadora. Aliás, na experiência cotidiana e numa vida, às vezes, tremendamente sofrida aprenderam – sem muitas aulas de teologia – a relação profunda entre evangelização e libertação (cf. EN 30), evangelização e promoção humana; sendo que “entre evangelização e promoção humana – desenvolvimento, libertação – existem de fato laços profundos” (EN 31) que o nosso povo conhece há muito tempo.
Esta é a beleza da missão! Quando todo o povo de Deus se junta a fim de se aventurar, pelas estradas da vida, anunciando que o Reino de Deus está próximo (Lc 10,9), aliás, já está no meio de nós (cf. Lc 17,21). Isto não acontece por milagre e, sim, quando temos a capacidade e a vontade de dar umas pinceladas coloridas, através de gestos concretos, no quadro da vida, da história – muitas vezes pintado só em branco e preto -, fazendo ressaltar as cores da ação misericordiosa de Deus através do amor, da caridade, da solidariedade, da acolhida e da inclusão de todos como irmão e irmãs.
Hoje como nunca há uma prioridade lógica e axiológica da evangelização. Há certa urgência de anunciar o Evangelho aos homens e às mulheres do nosso tempo estigmatizados pela violência, desrespeito à vida, exclusão e marginalização. A Igreja através de sua ação evangelizadora deve contribuir, junto às outras forças da sociedade, para que o “mundo novo” inaugurado por Jesus Cristo possa desabrochar e se consolidar no meio de todos os povos. “Este é o maior serviço que a Igreja pode oferecer, ao mundo e à humanidade” (cf. RM 2), a partir de sua renovação missionária e conversão pastoral; isto é, uma Igreja toda missionária: seus membros, sua pastoral e suas estruturas a serviço da Vida plena trazida por Cristo.
A V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe celebrada em Aparecida, no ano 2007, trouxe as diretrizes para uma profunda renovação da vida eclesial das Igrejas do Continente; propondo, de forma sem precedentes, o resgate da dimensão missionária que “deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos, e de qualquer instituição da Igreja” (DAp 365).
No Documento de Aparecida pode-se constatar que a palavra-chave é “missão”. Na realidade, em Aparecida a missão tornou-se o paradigma síntese em dois sentidos: primeiro, assume a caminhada missionária das quatro Conferências Latino Americanas anteriores; segundo, sintetiza as múltiplas propostas do Documento sob o prisma da missão (cf. SUESS, 2007, pp. 95-96).
Com o intuito de uma profunda renovação missionária, a terceira parte do Documento de Aparecida, dedicada ao “agir”, retoma a teologia do Vaticano II repropondo à Igreja Latino-Americana os fundamentos teológicos da missão evangelizadora, formulados no Decreto “Ad Gentes” sobre a “Atividade Missionária da Igreja”: “A Igreja peregrina é por sua natureza missionária, pois ela se origina da missão do Filho e da missão do Espirito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai” (AG 2). “Por isso, o impulso missionário é fruto necessário à vida que a Trindade comunica aos discípulos” (DAp 347).
Pode-se afirmar que o elã missionário presente no Documento de Aparecida é fruto da recepção dos três grandes documentos missionários: o “Ad Gentes”, a “Evangelii Nuntiandi” e a “Redemptoris Missio”. Esta novidade abrirá um novo horizonte para a Igreja Latino-Americana, tomando consciência que o mundo espera dela um compromisso mais significativo com a missão universal em todos os Continentes. Isto é, uma Igreja formada de discípulos missionários dispostos a “ir à outra margem” (Lc 8,22); àquela onde Cristo ainda não é reconhecido como Deus e Senhor, e a Igreja não está presente (cf. DAp 376).
Desde Aparecida, o termo missão no âmbito eclesial, seja nos documentos que na vida pastoral, tornou-se algo de corriqueiro. É uma palavra não mais reservada para alguns âmbitos privilegiados ou especializados; ela cruzou fronteiras, encontrou-se com novas e diversas realidades; foi assumindo matizes diferentes, ora se enriquecendo, ora se empobrecendo; mas, o mais importante é que esta palavra, quase mágica, entrou no linguajar do povo das comunidades eclesiais, percebendo, cada vez mais, a riqueza e a beleza, o potencial e o envolvimento que traz no seu bojo o conceito de missão.
É verdade que um termo usado de forma inapropriada ou de maneira desmesurada pode subir o “efeito inflacionário”, perdendo ou enfraquecendo seu sentido original. A inflação do conceito apresenta consequências positivas e negativas: “Uma das consequências negativas é a tendência de definir a missão de uma forma demasiadamente ampla – o que inspirou Neill Stephen a formular sua famosa máxima: Se tudo é missão, nada é missão” (BOSCH 2007, p. 609).
De certa forma é o que está acontecendo hoje com o uso demasiado da palavra “missão”. Parece que qualquer ação, qualquer feito no âmbito da pastoral, se tornou uma ação missionária. Este é o perigo que o termo missão está correndo no atual contexto. Com isso acreditamos não ser um motivo suficiente para limitar seu uso; ao contrário, que se use a palavra “missão”, porém agregando elementos que podem explicitá-la melhor a partir do seu verdadeiro significado original. Conhecer os princípios doutrinais que regem a missão, os objetivos a serem alcançados e os meios pelos quais a missão pretende alcançar todos os povos da terra.
Por este motivo, hoje como nunca, se faz necessário recolocar a pergunta: o que é missão? Porque a Igreja é missionária? Porque todos os batizados e batizadas devem ser missionários e missionárias? Este é o objetivo deste livro: procurar responder a estas perguntas repercorrendo as etapas mais significativas da caminhada missionária da Igreja.
Além disso, a partir do marco conciliar do Vaticano II, onde são colocados os novos fundamentos da missão, descobrir-se as riquezas teológicas e pastorais fruto desses cinquenta anos de caminhada que nos separam do grande evento do Concílio, enriquecendo a atividade missionária da Igreja impulsionada pelo Espirito Santo, “protagonista de toda missão eclesial” (RM 21).
Com este intuito pretendemos abordar o conceito de missão considerando o seu desenvolvimento histórico, teológico e pastoral. Queremos nos deixar envolver por este conceito que mostra todo o potencial do amor salvífico de Deus, porque “Deus caritas est”, Deus é Amor (1Jo 4,16). O Amor manifesto em Jesus Cristo e anunciado ao longo dos séculos pela Igreja a todos os povos, assistida pela força do Espírito Santo “que faz com que os fiéis possam entender os ensinamentos de Jesus e o seu mistério” (EN 75) e dessa forma alcançar a plenitude da vida e a salvação.
Missão é sempre um “cruzar fronteiras”, sejam elas geográficas, ideológicas, culturais, étnicas e sociais. Missão é um continuo deslocamento, continua itinerância visando ao encontro com o outro. É no encontro gratuito e desinteressado com o outro que a vida vem sendo enriquecida e ressignificada; e, quando o outro é “condenado” a viver à margem, excluído da sociedade por causa de preconceitos e rotulado na base de estereótipos, é aí que a missão da Igreja se faz mais urgente e seletiva resgatando sua dimensão profética fundamentada na missão libertadora e inclusiva de Jesus Cristo.
Memore Restori é leigo italiano residente no Brasil desde 1983. É bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana, pós-graduado com Especialização em Ensino Religioso pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR e mestre em Teologia com concentração em Missiologia pelo Instituto Teológico São Paulo de Estudos Superiores – ITESP. Atualmente é assessor do Centro Cultural Missionário da CNBB em Brasília.
Memore Restori. A missão no Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015 – Coleção Marco Conciliar.