Missão em questão: a missão em perspectiva decolonial
de Margit Eckholt – 07/10/2021
Apresentamos aqui o livro de Estêvão Raschietti “Missão em questão”, publicado pela Editora Vozes, fruto de sua tese de doutorado pela PUCPR. O texto a seguir é a Laudatio da Dr. Margit Eckholt, professora de Teologia Dogmática e Fundamental na Universidade de Osnabrück, Alemanha, por ocasião do Prêmio Erwin Kräutler de Teologia Contextual, Diálogo Inter-religioso e Pesquisa Teológica da Libertação, conferido a essa obra pela Universidade de Salzburg, Áustria, em 7 de outubro de 2021.
AL MISIONERO ANÓNIMO
Quizás no daba más tu teología,
del Reino y de un imperio servidor,
salvar y conquistar la paganía,
cruzado entre las armas y el Amor.
La espada tu Evangelio desmentía,
los yelmos apagan ban tu fervor,
y la mucha sangre de tu Eucaristía
no era sólo la sangre del Señor!
¿Pudo la Pascua hacernos gente esclava?
¿Qué nueva libertad nos liberaba
en las violentas aguas del Bautismo?
¡Qué paz traían tus atadas manos!
¿Hacía de verdad hijos y hermanos
el Padre Nuestro de tu catecismo?
Eu li esse poema do missionário e bispo de São Félix Do Pedro Casaldáliga, falecido em 8 de agosto de 2020, intencionalmente, no início desse discurso sobre a tese de doutorado do padre Estêvão Raschietti, apresentada na PUC do Paraná e acompanhada pelo teólogo pastoral Agenor Brighenti, assessor dos bispos brasileiros e há muitos anos ativo em diferentes redes pastorais e de teologia da libertação na América Latina.
As perguntas feitas aqui por Dom Pedro Casaldáliga são uma aplicação poética do debate sobre o paradigma clássico de Missão da “missio ad gentes”, ligado ao projeto de expansão das Coroas Portuguesa e Espanhola na América Latina desde o início da “Conquista” em 1492 — que resultou na opressão de culturas nativas até seu extermínio em muitas regiões do Caribe e do México atual até a região da Tierra del Fuego.
A violência intrínseca à prática missionária, citada por Bartolomé de Las Casas em seu escrito de 1542 — apenas para citar um exemplo — causa choque ainda hoje: já nas primeiras décadas, 80 a 90% da população indígena faleceu devido ao trabalho nas minas e plantações, à doenças trazidas de fora, e isso não apenas um fenômeno do início da Missão; a falta de reconhecimento dos povos nativos e de suas tradições culturais e religiosas, a arrogância eurocêntrica e a presunção marcaram o agir missionário século XX adentro. Nestes tempos em que a discussão sobre o colonialismos ganha espaço na política, na sociedade e na cultura, e assim, também a Missão é questionada em espaços seculares, é necessário um estudo como o de Estêvão Raschietti, que analisa de forma profunda, histórica e sistemático-teológica, extremamente precisa o que Missão é e pode ser, sem ignorar aquelas questões levantadas por Pedro Casaldáliga.
Esse trabalho se destaca pela ampla perspectiva traçada aqui: o projeto missionário da Idade Moderna – especialmente a Conquista das Américas Nativas, da América Latina, que os europeus viriam a chamar de “o outro” continente, mas também as aspirações colonialistas do século XIX e do início do século XX no território africano, asiático e do Pacífico – é analisado de uma forma fundamentalmente nova, sobre o pano de fundo da teoria da decolonialidade desenvolvida nas últimas duas décadas nas Ciências Sociais e da Cultura latino-americanas, de modo a traçar um “’outro’ paradigma missionário de cunho dialógico e decolonial”, o qual deixa para trás o etnocentrismo, o exclusivismo e o triunfalismo. De certo que os questionamentos do poema de Pedro Casaldáliga acompanharam muitos missionários em sua história; o que hoje se chama de crítica “decolonial” está inscrito no cerne da fé cristã: a cada nova volta, quando o Evangelho, e com ele cada pessoa e cada cultura com a qual se encontra o missionário, sofre violência, quando o Evangelho não traz vida, mas a morte. Bartolomé de Las Casas é apenas um dos exemplos mais conhecidos, eu poderia citar muito mais homens e mulheres, e há muitos estudos críticos e diferenciados em Missiologia. O fator “novo” no trabalho de Raschietti é o fato de que nele todo e qualquer eurocentrismo supostamente oculto, que é, porém, detectável em abordagens teológicas críticas e pioneiras na Missiologia, como as das Escolas da Louvania ou de Münster, é quebrado. A “nova” visão de Raschietti jaz na metodologia por ele escolhida, que conecta a abordagem histórica a uma abordagem hermenêutica, e que é baseada em um paradigma decolonial formado nas últimas décadas no contexto latino-americano.
Os capítulos 1 e 2 apresentam, nesse sentido, de um lado a visão histórica diferenciada, que descreve claramente a amalgamação da missão ao plano colonial e imperial, e do outro o ponto de partida hermenêutico, que faz referência ao projeto do grupo interdisciplinar de pesquisa Modernidade/Colonialidade, ao qual pertencem(eram) Enrique Dussel, Anibal Quijano, Santiago Castro-Gómez e Walter Mignolo; esta é a base metódica dos capítulos seguintes. O estudo do grupo “La colonialidad del saber” (2000) é urna das referências centrais metodológicas para Raschietti. O poder da espada, exercido pela política de uma forma especifica — cultural e religiosa —transformou os habitantes das áreas “descobertas” em “outros”, em não-europeus, em índios, em “nativos”. Os “outros” são “objetos” no contexto de uma lógica do poder e da conquista, e assim se inventa de um lado “América”, e do outro a “Europa” moderna — como ela ainda se vê nos dias de hoje.
Segundo três teóricos da Decolonialidade latino-americanos, Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, é exatamente neste momento que surge a ideia do que a Europa é e do que ela representa – e é quando nasce também o racismo. “De fato, a invenção da América”, diz Walter Mignolo, “foi o primeiro passo rumo à invenção das tradições não-europeias, e a Modernidade foi responsável por reprimir essas tradições através da conversão, do processo civilizatório e, mais tarde, da ideia de desenvolvimento”. Modernidade e Colonialidade são “duas faces da mesma moeda”: “A Colonialidade é constitutiva à Modernidade, sem Colonialidade não há nem pode haver Modernidade. Pós-Modernidade e Antiga Modernidade não podem se desfazer da Colonialidade, elas criam apenas uma nova máscara, atrás da qual elas continuam a se esconder, intencionalmente ou não”. Quando essa “Colonialidade do Poder” é descoberta, porém, abrem-se perspectivas para novos caminhos – e é aqui que se convergem abordagens da filosofia da libertação, da teologia da libertação e da decolonialidade. Diz Mignolo: “ao aceitar-se que a ‘Modernidade’ é um projeto ocidental, é preciso que se assuma também a responsabilidade pela ‘Colonialidade’ (o lado obscuro, constitutivo da Modernidade), por todos os crimes e atos de violência cometidos em nome da Modernidade”.
Dito de outra forma, a “Colonialidade” é a mais trágica “Consequência da Modernidade”, porém, ao mesmo tempo, é a sua consequência mais esperançosa, já que ela deu início ao impulso mundial rumo à “Decolonialidade”. É por conta desta perspectiva decolonial que a discussão latino-americana se distingue dos teóricos pós-coloniais cujas obras se desenvolveram principalmente nos antigos “centros coloniais” dos EUA e da Grã-Bretanha e que têm corno tema contextos africanos e asiáticos. Aqui abre-se espaço para perspectivas teológicas da libertação, especialmente com vistas à história das Conquistas e da Missão. Desconstrução e Reconstrução andam de mãos dadas, em toda sua complexidade e paradoxalidade; esse é o caminho seguido por Stefano Raschietti nos capítulos seguintes de sua dissertação, nos quais ele elabora, de forma extremamente diferenciada, a formulação de uma nova compreensão e de um novo conceito de Missão.
Nesses capítulos Estêvão Raschietti também parte de uma perspectiva hermenêutico-histórica: no capítulo 3, ele analisa práticas e desenvolvimentos missiológicos e textos do Magistério sobre Missão, especialmente os conteúdos missiológicos nos textos do Segundo Vaticano “Ad Gentes” e “Gaudium et Spes”. No capítulo 4, ele aprofunda essa abordagem diferenciada através de uma leitura precisa dos documentos das Conferências Episcopais Latino-americanas de Medellín, Puebla, Santo Domigo e Aparecida, até o Sínodo da Amazônia, no qual, para Raschietti, o novo conceito de Missão especialmente se concentra e no qual resulta todo o processo pós-conciliar: novos sujeitos, povos indígenas, negros, mulheres e migrantes, cujas vozes são enfim ouvidas; novas formas de participação e a quebra radical com todos os “centrismos”; o significado atribuído à pluralidade cultural e religiosa; e uma definição fundamental de Missão a partir da perspectiva do Reino de Deus e do Ato da Salvação no mundo, a partir do qual só então surgirá o que é a Igreja.
Tais reflexões levam ao capítulo final, no qual ele sintetiza o conceito decolonial de Missão, trabalhado por ele por todo seu trabalho sob uma perspectiva histórico-hermenêutica, em termos teológicos, pastorais e históricos. Raschietti leva a sério o “lugar, a partir de onde se pensa”, ele conduz a um “pensamento na fronteira”, de onde o “grito da outra metade da Modernidade” pode ser ouvido; pois, mesmo que se trate de cada novo processo de tradução intercultural, as linguagens, lógicas e “universos simbólicos” nas diversas culturas não se deixam comunicar de forma única linear, praticas missionárias permanecem ambivalentes, o encontro com o outro pode correr bem mas também falhar, e a avaliação desse processo continua em aberto. No futuro será importante incluir mais a voz dos povos indígenas e das mulheres, lógicas do pensamento devem ser expandidas no sentido de um sentipensar ou corazonar, e se deverá “tocas com as mãos as cicatrizes das feridas coloniais”. “Morar” na fronteira, como Estêvão Raschietti sugere – certamente com base em sua própria experiência e da do Bispo Erwin Krãutler e de Dom Pedro Casaldáliga – significa permanecer num “entre-espaço”, num “lugar de “contato”, de “passagem”, de “trans-missão”, de “ultrapassagem”.
Desta forma o/a missionário/a se aproxima do “sofrimento e da decepção, fraturas, dos conflitos” sentidos principalmente pelos povos nativos, pelos negros na periferia, pelas mulheres que sofrem de violência, pelos migrantes e trabalhadores/as que vivem em condições extremamente precárias. Essa fronteira não é um “lugar confortável”, como diz Raschetti, mas ela ensina “a arte da pluralidade dos discursos e da polifonia”. Nesse sentido também se pode aprender novamente com “Missio ad gentes” enquanto “Missio inter-gentes”, que nos permite converter pelo outro e aprender com ele, aceitar a “vulnerabilidade da “nossa” verdade e a necessidade de um salto epistêmico em nossa relação com nós mesmos, com Deus e com o mundo”. Esse novo “morar” “é um “estar juntos a caminho”, no qual eu aprendo a coordenar meus passos com o do meu companheiro de diálogo, no qual eu ultrapasso as fronteiras coloniais e através do qual todos nós nos tornamos pessoas mais livres”.
Padre Estêvão Raschietti, eu fico muito feliz que você receba o Prêmio Erwin Krãutler deste ano e agradeço por esse convite desafiados a todos nós – e a mim enquanto Europeia Ocidental – a aprender a viver no “entre” das fronteiras.
Para concluir, gostaria de citar mais uma vez um poema de Pedro Casaldáliga:
A BARTOLOMÉ DE LAS CASAS
Los Pobres te han jugado la partida
de una iglesia mayor, de un Dios más cierto
contra el bautismo sobre el indio muerto
el bautismo primero de la vida.
Encomendero de la Buena Nueva,
la Corte y Salamanca has emplazado.
Y ese tu corazón apasionado
quinientos años de testigo lleva.
Quinientos años van a ser, vidente,
y hoy más que nunca ruge el Continente
como un volcán de heridas y de brasas.
¡Vuelve a enseñarnos a evangelizar,
libre de carabelas todo el mar,
santo padre de América, las Casas!
O livro está a venda pela Livraria Vozes: para maiores informações click aqui