O novo rosto do clero: perfil dos “padres novos” no Brasil
de Eliseu Wisniewski – 15/10/2021
Os resultados de uma pesquisa de campo em âmbito nacional com as análises apresentadas por especialistas do campo das ciências religiosas e social, em particular da teologia e da pastoral, focaram o perfil dos “padres novos”. Este é o escopo do livro O novo rosto do clero: perfil dos padres novos no Brasil (Vozes, 2021, 304 p.), de autoria de Dr. Agenor e coautoria de Alzirinha Rocha de Souza, Andrea Damacena Martins, Antônio José de Almeida, Antônio Manzatto, Brenda Carranza, Fernando Altemeyer Junior, João Décio Passos e Manoel José de Godoy.
Temos vivido tempos de crise, de mudanças e de desafios. As “sombras de um mundo fechado” e “os sonhos desfeitos em pedaços” desafiam também o ministério presbiteral. Frente a isso é fundamental pensar o papel do presbítero na contemporaneidade. Sabedores que o perfil do clero brasileiro vem mudando significativamente nas últimas décadas, Brighenti destaca ser essa a razão principal que “motivou uma pesquisa em busca do perfil dos “padres novos” no Brasil foi o fato de, nas últimas décadas, ter emergido um novo perfil de presbíteros no Brasil, assim como praticamente em todo o continente. Este contingente de presbíteros da Igreja Católica conforma sua visão de mundo, de Igreja e do exercício do ministério. De um modo geral, em sua vida pessoal e no desempenho de sua missão, eles têm demonstrado sensibilidade e interesse por outras realidades e questões, que aquelas típicas dos “padres das décadas de 1970/1980”, afinados com a renovação do Concílio Vaticano II e sua reconciliação com o mundo moderno, a tradição libertadora da Igreja na América Latina e comportamentos pessoais, ao se vincularem ao recente deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético na esfera da experiência religiosa, tem provocado tensões e entraves nos processos pastorais em curso, tanto nas dioceses entre presbíteros como nas paróquias onde atuam frente a religiosas, leigos e leigas” (p. 17).
Como dito acima a obra é o resultado de uma pesquisa de campo, que buscou identificar o perfil dos “padres novos” no Brasil, em relação à sua visão de mundo de hoje, da Igreja e do exercício do próprio ministério. Os dados levantados são oriundos de uma consulta aos presbíteros, leigos (as), jovens, seminaristas e religiosas de três dioceses, em cada uma das cinco regiões do país.
A análise preliminar dos resultados que hora se apresenta, se “restringiu a apresentar um breve relatório dos dados levantados, relativos a cada uma das trinta perguntas que compunham, o questionário aplicado, seguido de uma análise preliminar “ (p. 272), está estruturada em três partes, precedidas de dois capítulos com informações sobre o objeto, o teor e as características da pesquisa.
No primeiro capítulo (p. 17-31), Agenor Brighenti “aborda a emergência dos ‘padres’ novos no catolicismo brasileiro, um sujeito incômodo e objeto particular desta pesquisa” (p. 14). Incômodo, esclarece o autor “no sentido de fazer pensar, provocar instabilidade, levantar questionamentos, exigindo distanciamento analítico, sob pena de desqualificações ligeiras e injustas” (p. 14).
No segundo capítulo (p. 32-50), Andréa Damacena Martins e Agenor Brighenti “explicitam o teor e as características da pesquisa, referenciais importantes a se levar em conta no acesso aos dados levantados e em suas interpretações “ (p. 14), isso porque “respostas a questões como ‘o que’ se perguntou na busca do perfil dos ‘padres novos’ no catolicismo brasileiro; ‘a quem’ se perguntou para obter os dados almejados; e ‘como’ se perguntou, ou seja, que meios se utilizou para a coleta de dados etc., precisam ser levadas em conta na abordagem dos resultados” (p. 14).
A Parte I (p. 55-122) apresenta e faz uma análise preliminar de dados coletados pelo primeiro bloco de perguntas do instrumento aplicado na pesquisa de campo, relativo à visão dos entrevistados sobre o mundo de hoje. Brighenti destaca que “o mundo é constitutivo da Igreja. Não é o mundo que está na Igreja, mas é a Igreja que está no mundo. Ela faz parte dele e existe para ser sacramento do Reino de Deus no mundo. Assim sendo, a visão do mundo é um elemento importante para caracterização do perfil dos “padres novos”, tendo-se em consideração que o modo como se dá a relação da Igreja revela muito do perfil daqueles que a integram e da própria instituição, pois não há como estar no mundo sem ser afetado por ele, para o bem e para o mal. Sair do mundo ou buscar nele uma presença neutra, supra ou extramundana, além de uma pretensão ilusória, do ponto de vista da fé cristã não só é contraditório como não é compatível com ela. Apesar dos obstáculos à missão da Igreja no mundo, este é sempre instância de enriquecimento e de possibilidades, pois é dele que ele tira as mediações de sua presença e ação, assim como é nele e para ele que a Igreja existe e age” (p. 53-54).
Neste bloco perguntou-se: 1) O que está piorando no mundo hoje, 2) O que está melhorando no mundo de hoje?, 3) Quais os maiores problemas de nosso povo, hoje?, 4) Quais os maiores desafios que o mundo nos coloca para a vivência da fé cristã?, 5) Quais os principais antivalores reinantes na sociedade atual?, 6) Quais os principais valores que emanam de uma sociedade em mudança, hoje?, 7) Que realidades positivas estão emergindo no mundo de hoje?, 8) Que realidades considera como negativas no mundo de hoje?, 9) Qual deve ser a posição da Igreja frente ao mundo de hoje?, 10) Como a sociedade em geral vê a Igreja, hoje?
Concretamente, nesta primeira parte, em base a um relatório global dos dados (visão da totalidade das amostras, por perspectiva pastoral, por categoria de agentes eclesiais), relativos à “visão dos ‘padres novos’ sobre o mundo de hoje”, redigido por Andrea Damacena Martins e Agenor Brighenti (p. 56- 68), Brenda Carranza faz uma análise preliminar dos dados relativos às questões: 1, 2, 3 e 4 (p. 68-78) ; Andrea Damacena Martins das questões: 5, 6, 7 e 8 (p. 79-95); e, João Décio Passos das questões 9 e 10 (p. 96-110).
A abordagem dos dados desta primeira parte termina com algumas considerações feitas por Agenor Brighenti, o qual chama a atenção para: as ambiguidades de um tempo de travessia, o refúgio em uma subcultura eclesiástica, o individualismo e novas formas de sociabilidade, a crise das instituições e passagem da sociedade para a multidão, a crise de sentido e volta do religioso, a afirmação do simbólico e o escapismo do esotérico, a irrupção do pluralismo e o contraponto da intolerância (p. 110-122).
A Parte II (p. 123-190) apresenta os dados levantados pelas perguntas do segundo bloco do questionário que tinham por finalidade identificar o perfil dos “padres novos” em relação à visão sobre a Igreja no mundo de hoje. Estas eram as questões: 1) A renovação do Vaticano II está avançando, estancada, retrocedendo?, 2) Na prática, a tradição latino-americana (Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida) está avançando, estancada ou retrocedendo?, 3) Qual a valoração da Teologia da Libertação?, 4) Que ações do “modelo de pastoral” dos anos de 1970-1980 já não respondem mais na ação da Igreja, hoje?, 5) Que ações do “modelo de pastoral” dos anos de 1970-1980 continuam válidas na ação da Igreja, hoje?, 6) Quais as maiores lacunas ou vazios na ação pastoral, hoje?, 7) Quais os serviços pastorais mais importantes a serem desenvolvidos, hoje?, 8) Que novas frentes pastorais precisam ser abertas, hoje?, 9) Como a ação da Igreja tem contribuído para uma sociedade mais justa e fraterna? 10) Que mudanças na estrutura da Igreja são mais urgentes, hoje?
Diante disso “ a pesquisa se centrou na recepção da renovação do Vaticano II e sua implementação na América Latina, nos parâmetros da tradição eclesial libertadora, que tem na Teologia da Libertação um de seus pilares, bem como no modelo de pastoral daí derivado, apontando para seu alcance, limites e novas frentes pastorais a serem abertas” (p. 175), entendendo que “a adesão ou distanciamento da eclesiologia do Vaticano II, que reconcilia a Igreja com o mundo moderno e a situa no seio da sociedade pluralista, deixando para trás uma Igreja autorreferencial como frisa o Papa Francisco, são reveladoras de identidade ou perfil de um cristão ou mais propriamente de um católico em situação contemporânea” (p. 126).
Nesta segunda parte, concretamente, em base a um relatório global dos dados relativos à “visão dos ‘padres novos’ sobre a Igreja hoje”, (visão da totalidade das amostras, por perspectiva pastoral, por categoria de agentes eclesiais), redigido por Andréa Damacena Martins e Agenor Brighenti, este faz uma análise dos dados relativos às questões 1, 2 e 3 (p. 127-142); Alzirinha Rocha de Souza das questões 4, 5, 6, e, 7 (p. 143-160); e Antônio Manzatto das questões 8, 9, 10 (p. 161-175).
A abordagem dos dados desta segunda parte termina com algumas considerações gerais feitas por Agenor Brighenti (p. 175-190). Este salienta que “diante da renovação do Vaticano II e das contribuições da Igreja na América Latina, antes de tudo, os quatro modelos inconsequentes com as mudanças de nosso tempo [1) de neocristandade: pastoral de conservação – que desconhece as mudanças; 2) de neocristandade: pastoral apologista – que teme as mudanças; 3) de pós-modernidade: pastoral secularista – padece diante das mudanças; 4) de encantamento com a modernidade: a pastoral liberacionista – que nega as mudanças], desafiam superar a tentação de voltar às velhas seguranças do passado.
Como o mundo mudou também a renovação do Vaticano II e da tradição libertadora precisam passar por uma ‘segunda recepção’ no novo contexto. Se, por um lado, é ser inconsequente com o novo contexto repetir modelos do período pré-conciliar, por outro, além do resgate da renovação do Vaticano II e da tradição libertadora, que se acreditava perdidas, o momento atual já não permite repetir o modo de ser Igreja e de atuar das décadas de 1970/1980” (p. 188).
A Parte III (p. 191-278) apresenta os resultados da pesquisa em relação com a visão dos católicos dos Brasil sobre o exercício do ministério presbiteral. Estas eram as dez perguntas do terceiro bloco: 1) O que está superado, hoje, do modelo de ministério dos presbíteros da “geração 1970-1980”?, 2) O que continua válido do modelo de ministério dos presbíteros da “geração 1970-1980”?, 3) Quais as principais novidades que os “padres novos” trazem no exercício de seu ministério?, 4) O que não tem futuro no modo dos “padres novos” exercerem o ministério?, 5) Valoração sobre o processo de formação dos futuros presbíteros, 6) O que parece motivar um jovem ser padre, hoje? 7) O que parece desmotivar um jovem ser padre, hoje?, 8) Como está a vida e a relação do presbítero de sua diocese, entre seus membros e com o bispo?, 9) como vê s presbíteros, em geral?, 10) Para cumprir sua missão qual o modo mas adequado para um presbítero vestir-se, hoje?
Estas questões mostram que “é na interação entre ‘padres novos’ e ‘padres das décadas de 1970/1980’ que o perfil dos ‘padres novos’ se mostra com mais clareza, pois se está pondo lado a lado duas perspectivas sociopastorais – a perspectiva ‘institucional/carismática’, à qual estão vinculados os ‘padres novos’, e a perspectiva ‘evangelização/libertação’, à qual estão vinculados os ‘padres das décadas de 1970/1980’. A valoração do modelo de ministério relaciona-os com sua perspectiva sociopastoral; dados relativos a seu processo de formação ajudam a ter um conhecimento de causa de certos comportamentos e práticas; e a relação entre presbíteros e do presbitério com o bipo pode medir o grau de fraternidade ou de tensões entre as duas perspectivas de Igreja frente à recepção do Vaticano II e de sua implementação pelo viés da tradição eclesial libertadora, a marca da Igreja na América Latina” (p. 193-194).
Nesta terceira parte, concretamente em base a um relatório global dos dados relativos à “visão dos ‘padres novos’ sobre o exercício do ministério presbiteral na Igreja e no mundo de hoje”, redigido por Andréa Damascena Martins e Agenor Brighenti, (visão da totalidade das amostras, por perspectiva pastoral, por categoria de agentes eclesiais), a análise preliminar dos mesmos é feita por Antônio José de Almeida – questões 1, 2, 3 e 4 (p. 195-216), Fernando Altemeyer Júnior – questões 5,6 e 7 (p. 217-231), Manoel José de Godoy – questões 8, 9 e 10 (p. 232-256). As considerações finais sobre o conjunto desta terceira parte foram feitas por João Décio Passos (p. 256-269).
O referido autor tece comentários sobre a individuação religiosa e o perfil do presbítero, ficando “duas dinâmicas sociológicas presentes nos tempos de mudança na era conciliar e, por conseguinte, nas práticas ministeriais. A primeira relacionada à preservação de modelos ministeriais tradicionais. A segunda a mudanças ocorridas nas práticas ministeriais nos últimos tempos, desde as renovações desencadeadas pela renovação conciliar” (p. 257). Conclui ressaltando que “assiste-se, hoje, a um avanço progressivo de um individualismo religioso tradicionalista ou de um tradicionalismo individualizado” (p. 269).
Este livro apresenta parte dos dados levantados por uma pesquisa de campo levado a cabo em todo o território nacional, seguida de uma análise dos resultados, ainda que de modo preliminar, por parte de renomados teólogos-pastoralistas e cientistas sociais. Frente a isso “as categorias utilizadas para pensar os resultados de uma pesquisa operam numa dinâmica de circularidade, quando os elementos teóricos e empíricos se iluminam mutuamente e se complementam, na medida em que possibilitam a construção de um quadro compreensivo. As reflexões aqui apresentadas nasceram dessa operação metodológica. Não se trata de um discurso normativo, mas tão somente interpretativo. Seu uso quiçá útil se restringe às possibilidades e limites dessa hermenêutica” (p. 268).
O novo perfil de presbíteros na Igreja Católica “não é um fenômeno simplesmente passível de ser desqualificado ou desprezado. O fenômeno têm atraído a atenção de teólogos, cientistas da religião e analistas sociais, tal como demonstram pesquisas”(p. 18), comprovando que o ministério presbiteral revela nos últimos anos um deslocamento de um modelo construído pelo Vaticano II para um avanço progressivo de um individualismo religioso tradicionalista ou de um tradicionalismo individualizado (cf. p. 268-269)
Diante da complexidade do perfil dos “padres novos” na Igreja do Brasil – esta obra é um convite para pensar o ministério presbiteral e seu exercício na Igreja e no mundo de hoje – com lucidez e criticidade, pois, em “meio a práticas e pastorais e comportamentos pessoais, por um lado ligados aos valores da pós-modernidade e às novas tecnologias e, por outro, a devocionismos e tradicionalismos nostálgicos de um passado sem retorno, é preciso identificar em meio à ambiguidade de um sujeito incômodo, críticas precedentes à forma como se tem levado a cabo a renovação do Vaticano II e a tradição eclesial libertadora, bem como possíveis novidades e valores por eles vinculados a serem levados em consideração” (p. 18).
A busca permanente de fidelidade ao Deus da história na ação evangelizadora exige debruçar-se com seriedade sobre o fenômeno dos “padres novos”. Tenha-se em conta que, em 2019, segundo os dados do Censo Anual da Igreja Católica no Brasil, temos um contingente presbiteral de 21.812, sendo 14.690 integrantes do clero diocesano e 7.121 do clero religioso.
Certamente este estudo analítico em muito ajudará a superar juízos precipitados ou preconceituosos, bem como tomadas de posição que desconheçam a realidade concreta da vida e do ministério desse segmento importante do clero, sobretudo quando este vai ser o depositário da responsabilidade, nas décadas futuras, de estar à frente dos processos pastorais nas Igrejas Locais e da formação dos futuros presbíteros. Em suma, O novo rosto do clero: perfil dos “padres novos” no Brasil contribuirá com a “obra evangelizadora da Igreja católica no Brasil e sua missão na sociedade atual” (p. 11).
Uma correção a ser feita futuramente e uma observação. A correção: na página 126 onde se diz que Alzirinha Rocha de Souza faz a análise dos dados relativos às questões 4, 5, 6 e 8; e Antônio Manzato das questões 7, 8 e 10.
A observação: na página 23, Brighenti utiliza como referência a obra Cenários da Igreja (Edições Loyola), do teólogo jesuíta João Batista Libanio (1932-2014) – o faz a partir da sua primeira edição publicada em 1999. Nesta edição Libanio traçou visões da Igreja a partir de quatro categorias centrais: a “instituição”; o “carisma”; a “pregação” e a “práxis transformadora”. Naquele contexto estes quatro cenários cobriram o conjunto de movimentos e tendências no interior da Igreja católica.
Na quarta edição desta obra, em 2009, Libanio, acrescentou um quinto cenário: a “Igreja plural fragmentada pós-moderna” (p. 159-196), entendendo que a categoria da “fragmentação”, com o crescente pluralismo de expressões religiosas, permite entender melhor o momento atual da Igreja em choque com o relativismo daí resultante. No contexto dos últimos anos de pontificado de João Paulo II e no pontificado de Bento XVI, este veio a renunciar em 2013, o quinto cenário pretendeu mostrar o que estava a acontecer naquele momento, destacando uma nova maneira de viver o conflito, preferindo prescindir das tensões a enfrentá-las bem no espírito pós-moderno. O futuro deste quinto cenário, segundo Libanio “dependerá de como a Igreja institucional reagirá e de como o povo de Deus tomará consciência de sua vocação. Enquanto se permanecer no embate entre o cenário tradicional duro e o leve pós-moderno, como alternativas, parece que o último levará vantagem por força dos fatos e da cultura dominante” (p. 194).
Os resultados desta pesquisa sobre o perfil dos “padres novos” e as análises dos renomados teólogos-pastoralistas e cientistas sociais confirmam em grande parte os apontamentos apresentandos por Libanio neste quinto cenário: “a radiografia mostra como está a funcionar o corpo eclesial com a pluralidade de componentes que atuam nele” (p. 198).
Fonte: IHU